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Oficina Literária

  • Foto do escritor: rccato
    rccato
  • 17 de dez. de 2017
  • 4 min de leitura

O texto a seguir faz parte de uma oficina literária composta por alunos do curso de Letras da Universidade Cruzeiro do Sul, que tem por objetivo a elaboração de um livro, sendo cada capitulo escrito por um autor diferente, dando assim, continuidade a história com rumo e um desfecho inesperado. Criado por iniciativa do professor de Literatura Portuguesa, Manuel Guaranha, os capítulos serão postados semanalmente na página: Os Bosques da ficção .

Segue-se abaixo o primeiro capitulo do livro, para lerem os próximos capítulos não deixem de acessar Os Bosques da Ficção.

Capítulo I - escrito por Rafaella Catto

As feridas em minha pele foram costuradas com a linha da mágoa. As dores em meu peito foram anestesiadas pelo descontentamento.

A minha doença foi a ignorância do mundo.

Quinta-feira. 4 horas. Uma pequena palpitação incomum. Laura, despertada do sono, mantinha o olhar vazio fixo para o ventilador de teto. O que será que a fizera acordar? Será que foram as dores que vinha sentindo apertar seu peito arrancando-lhe o ar? Não tinha sido a primeira vez. Laura começara a achar que noites mal dormidas estavam começando a fazer parte de sua rotina exaustiva. Então, ela virou-se para o lado puxando o lençol sobre si, o relógio em cima da mesinha denunciava as horas, a frustração invadiu seu corpo magro e aparentemente frágil ao ver que não se passara nem quinze minutos. Quanto mais ela fixava o seu olhar no relógio, mais ela se imergia nas profundezas de seus pensamentos escuros e incompreensíveis. Como se estivesse no piloto automático, descobriu-se e sentou à beira da cama, a única coisa que conseguia sentir era os pés tocarem no assoalho de madeira. Sim, como ela amava a forma que o laminado da cor de pinho deixava seu apartamento mais acolhedor. Cinco anos antes quando precisou partir, Laura estava intensamente feliz e com o olhar um tanto audacioso, pois achava que estava na hora de se aventurar. Despediu-se do que deixara para trás e mudara para este apartamento na Rua do Oratório. Como ela, aos vinte e três anos, recém-formada em psicologia pela Universidade Católica, poderia imaginar que aos vinte e oito anos estaria tão bem-sucedida e completamente infeliz? O que deixara passar nos últimos anos? Estava tão ocupada com a decoração do apartamento, a conclusão de seu mestrado e com a inauguração de seu consultório que nem se preocupara em conhecer quem morava na porta de frente a dela. Não se deu nem sequer férias.

Então, caminhou arrastando seus pés descalços lentamente do quarto à cozinha. Na bancada, onde costumava tomar seu café da manhã, encontravam-se alguns prontuários de clientes que seriam atendidos durante toda aquela quinta-feira. Laura pegou o café da cafeteira e o despejou de forma desajeitada em uma xícara, pegou-a com as duas mãos certificando-se de que não iria derrubá-la. Voltou à bancada, começou a folhear os prontuários, quando sua mente foi invadida por outro pensamento existencial. Laura não conseguia entender o porquê de não conseguir resolver seus próprios problemas quando era tão boa em ajudar a resolver o dos outros, com os quais não tinha nenhuma ligação emocional. Ela era sozinha, não tinha religião, pois nunca tinha sentido a presença espiritual em sua vida e também nunca procurara, não tinha amigos por perto e seu parceiro sempre estava ausente ocupado com suas viagens a trabalho, talvez tivesse se cansado dela como todos os outros, talvez ele não a compreendesse. Laura sentia como se seu ser fosse uma morada de vidro transparente pela qual todos passavam, mas não a pudessem ver. Ela temia que em alguma dessas passagens alguém atirasse uma pedra em uma das paredes desmanchando-a em incontáveis pedaços.

Então, seu olhar voltou-se para um prontuário específico: Donna Molinos Vega, dezessete anos, estudava no Colégio Marista Arquidiocesano, era filha de arquitetos, havia sofrido um trauma recentemente: perdera seu irmão em um acidente de carro do qual ela escapara. Laura se lembrava claramente da última visita da menina em seu consultório, do olhar perturbado da paciente. Donna, era uma intensa bagunça, não sabia quem era ou o que queria ser, tinha dificuldades para se relacionar desde o trauma e a sua vida familiar era como uma montanha russa, o oposto de Laura aos dezessete anos. Quando Laura estava no colegial, não tinha traumas, não tinha grandes responsabilidades e mesmo que por vezes o seu mundo parecesse cair, ela conseguia mantê-lo nas palmas das mãos. Ela fora uma adolescente comum, com grandes sonhos e o mundo todo para explorar.

O que aconteceu com Laura nos últimos anos afetara mais a sua aparência do que o seu interior. Quem a conhecia, via uma mulher talvez um pouco cansada com o olhar distante, mas por trás dessa camada que criara para si mesma, ainda se podia enxergar aquela menina de pele alva e cabelos negros com seus olhos caramelos cheios de vida, rindo com seu namorado encostada em um dos muros do pátio do colégio. Ele foi o primeiro amor de sua vida. Naquela época, ela acreditava fielmente que duraria para sempre, que eles seriam uma espécie de exceção e que o amor que eles juraram resistiria à passagem do tempo. Se ela ainda acreditava em amor? Laura não sabia o que essa palavra significava há muito tempo. Enquanto olhava o relatório que havia feito de sua última consulta com a menina, Laura notou uma fala dita por Donna no final da sessão, anotada rapidamente, no rodapé da página: “Algo se rompeu em meu interior! ”. Ela conseguia visualizar a forma como a menina levantou-se do sofá com seus olhos azulados prestes a transbordar-se em lágrimas antes de ir embora. Então, Laura sentiu uma ponta de culpa por deixa-la sair daquela maneira, mas o que ela poderia fazer? Havia dias que eram melhores do que os outros, ainda mais quando se tratava de seu trabalho. Donna estava quebrada e precisava de ajuda e essa ajuda era Laura, que era uma excelente terapeuta. Mas Laura não se achava excelente. Para ela, as pessoas eram apenas um eco do que imaginavam ser e que o mundo em que viviam ecoava desespero sussurrado por corações partidos.

* Texto produzido para a oficina literária Os Bosques da Ficção

# Até data postagem neste blog, três capítulos do livro foram publicados na pagina da oficina.

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